Postagens populares

Total de visualizações de página

sábado, 26 de janeiro de 2013

CURVELO: A PRAÇA.

A PRAÇA DOS TROPEIROS*
Foto Marina da Silva
Marina da Silva

Desde que se entendia por gente, Sofia nunca ouvira ninguém chamar a pracinha assim, de praça dos tropeiros. Toda cidade conhecia e a chamava de praça Benedito Valadares, homenagem feita a um político do estado pelos políticos da cidade. Mas quem passava por ela, bem no centro e no meio do caminho para várias outras cidades, mesmo sem querer, ficava intrigado com os monumentos ali colocados. Uma fonte luminosa, um laguinho com peixes e luzes coloridas, um enorme leque de concreto e abaixo dele uma estrutura em forma de um pequeno palanque gradeado, ligado por um passadiço ao grande caldeirão de ferro e tudo rodeado por um belo jardim de formas curvas e sinuosas.
Foto Marina da Silva

Mas o que estes símbolos significavam? Por que estavam ali? Era somente esquisitice de gente do interior?
Alguns riam da pracinha, pouco se falava ou se fala dela nas escolas; e em meio ao descaso, descuido e desleixo, a coitada vem sendo maltratada, escangalhada e com ela, boa parte do patrimônio e da importância histórica da cidade. Caminho dos tropeiros a época do ouro e dos diamantes,  o vilarejo surgiu com a fundação da igrejinha de santo Antônio à beira da estrada, por padre Antônio de Ávila Corvello, e desse patrimônio nem sequer se tem o rastro.
Foto Marina da Silva


Por esses caminhos passavam ouro, diamantes, pedras preciosas, escravos, mascates, o gado vindo da Bahia e muitas outras preciosidades e se dirigiam para o Registro da Coroa portuguesa, hoje atual cidade de Contagem.
 Foto Marina da Silva

Idealizada nos anos 70, a pracinha veio contar um pouco dessa história da cidade, que surgiu por causa dos tropeiros, que paravam ali por perto, para o descanso das tropas e do gado, muitas vezes embaixo de cajueiros, mangueiras, jenipapeiros, pequizeiros, pau d’óleo e tantas outras árvores do nosso belo cerrado, ali representadas pelo grande leque de concreto armado. A fonte e o laguinho representam os vários rios, córregos e riachos e a fartura de água e peixes.
Foto Marina da Silva

 Já o caldeirão simboliza o prato feito pelos peões, o feijão tropeiro; uma deliciosa mistura de feijão roxinho, torresmo, lingüiça, ovos e farinha de mandioca, saboreada com couve assustada, cortada bem fininha. O famoso feijão tropeiro que encanta os turistas na maior festa de forró do estado, que teve seu primeiro evento em 1980, na pracinha Benedito Valadares.
Assim como a igrejinha de santo Antônio, a pracinha vem sendo esculhambada, desprezada no seu valor histórico por várias administrações da cidade. É um patrimônio agonizante, pedindo um pouco de atenção, de carinho.
O que Sofia aprendeu no grupo escolar Monsenhor Rolim, hoje desativado, sobre a pracinha, precisa ser resgatado antes que se perca de vez o maior patrimônio da cidade.
Curvelo tem seu próprio hino**, um bonito canto de amor a terra morena e querida, a flor do sertão, que perdia muito de sua beleza por ser um canto forçado na obrigatoriedade geral dos muitos anos de governo dos militares.
Foto Marina da Silva. A praça ainda guarda muitos encantos e lembranças como os desfiles de carnaval e as comemorações do 7 de setembro.


A pracinha anda descuidada, suja, perdeu muito do seu traçado original e teve seus belos jardins violentados por reformas desorientadas. As suas graciosas curvas por onde serpenteavam as crianças nas noites de domingo, foram retificadas. Foram deitados abaixo os nichos e recônditos formados pelas belas folhagens, aonde beijos, abraços, carícias e juras de amor eram trocados pelos namorados.
Uma maluquice imperdoável destruiu os jardins. Imensas e desproporcionais árvores substituíram as plantas anteriores acabando de vez com o namoro escondidinho e os beijos roubados. Alargou-se a passagem central, muito disputada e perderam-se os encontrões entre candidatos a namorados. Muitos namoros começavam assim, naquele quase estreito de Gilbratar entre o leque e uma das sinuosidades.
Foto Marina da Silva: Cine Virgínia, patrimônio histórico que voltou as mãos do povo!

Ah pracinha! Numa cidade pequena como aquela, não tinha Fantástico que competisse com a missa das sete, com as sessões do cine Virgínia e os volteios e mais volteios pela praça. E a música então? Sim havia caixas de sons espalhadas em cada nicho de plantas. Ouvia-se,  a rádio inconfidência no cair da tardinha, o “Good time” da BH FM e levava-se fitas cassetes para serem tocadas até as dez da noite. Milton, Chico, Caetano, Gil, Simone, Betânia, Gal, Belchior, Fagner, a Cor do Som e o famigerado Raul Seixas,, a metamorfose kafkania ambulante na sopa das "bestas fardadas"!
A cidade tinha poucos pontos de diversão e os melhores ficavam ao redor da praça. O magnífico cine Virgínia, o Curvelo clube e seu acesso restrito aos brancos ricos da cidade, os bares e botecos como a Sheila, o Cabana, o Carrancas. Havia ainda a esquina da sorte, a farmácia Brasil, do senhor Afonso, a sorveteria, o salão Paulista, a casa Mazinho.
Foto Marina da Silva. Igreja de Santo Antônio, o padroeiro de Curvelo.

Para qualquer parte comercial da cidade que se ia, o trajeto pela praça era quase inconsciente e também era o ponto obrigatório aos domingos depois da missa das sete. Cada morador tinha seu lugar preferido. As crianças eram donas do leque, do passadiço até ao caldeirão, da rampa de acesso ao palanque, de toda a parte baixa do lago próxima à fonte luminosa. Os namorados e os que apenas flertavam, ocupavam os nichos mais escurinhos, junto às caixas de som, no interior da praça. Os casados, a parte central, vigiando as crianças que corriam inquietas por todos os lados. Os solteiros, rapazes e moças ocupavam todos os outros espaços, dando volteios sem fim, gastando muita sola de sapato. O ritual era sempre o mesmo. Vestia-se a melhor roupa de domingo, e após a missa, iniciava-se as intermináveis voltas na praça. Rodeava-se, atravessava-se pelo seu centro, de baixo para cima, de cima para baixo, com o objetivo de ver gente, flertar namorados, encontrar amigos, bater papo.
Foto Marina da Silva

Hoje impera o descuido e o desrespeito ao patrimônio histórico. O lago precisa de limpeza e reparos, anda sempre sujo e não se tem notícia dos peixes que ali nadavam. A fonte, Sofia não sabe se ainda funciona. O lugar perdeu seu encanto, seu charme e com ele foram-se os bares. O cinema não agüentou a concorrência da tv, do vídeo, da Universal.
Mas o que aconteceu que levou a praça ao descaso? O que quebrou o encanto das tardes de outono, das belíssimas noites frias, estreladas e enluaradas, do inverno; do calor, sempre a pedir picolé de tamarindo, do verão; do florido muito rosa, branco e lilás, da pracinha na primavera?
Sofia lembra-se bem. Um dia calaram a voz da praça! O terror espantou as famílias, o medo encheu as salas de aula. Era o tempo da ditadura, que se iniciara em março de 1964. Sofia acabara de nascer e crescia aprendendo a temer os comunistas, que comiam criancinhas, não acreditavam em Deus e ainda por cima queriam as terras dos muitos fazendeiros da sua cidade.
Em meados dos anos 70, foi criada a pracinha, homenageando a história da fundação da cidade, na rota dos tropeiros. 
Fonte: galeria de fotos do grupo Filhos de Curvelo no Facebook


Era uma linda praça, com fonte de água, colorida por lâmpadas verdes, azuis, vermelhas, amarelas, que era ligada sempre aos domingos, após a missa das sete na matriz de Santo Antônio. Tinha lindos jardins, nichos formados por belas folhagens e um moderno sistema de som que sempre tocava a rádio Inconfidência, a BH FM, de onde chegavam as notícias e o som de Fagner, Belchior, Raul Seixas, Chico Buarque e tantos outros.
Músicas que instigavam, mexiam com a imaginação entorpecida pelo medo. Medo da cabeça raspada, da gilete ou do cigarro que mutilava o bico do peito, do pau-de-arara, do choque elétrico, da agulha debaixo da unha, dos afogamentos. Contra o terror da ditadura as famílias criavam a educação terrorista e do medo. As crianças levadas, arteiras, eram comunistas, como o irmão de Sofia, que adorava Raul Seixas.
Sofia gostava do Raul, porque seu irmão comunista, seu pai, a cidade inteira também gostava. E levava-se fitas cassete do Raul para o zelador tocar na praça. E era uma música linda, que punha a gente a pensar.
Mas pensar estava proibido e falar então? Nem pensar! E uma noite explodiram as caixas de som da praça, calando Raul Seixas e todos os que achavam que podiam falar. Alguém decretou que o silêncio e o voltar para casa logo após a missa, era o mais seguro para a cidade e para a nação. Conta-se que o autor de ato tão bárbaro foi um policial.
Depois da explosão a praça nunca mais foi a mesma; a música nunca mais tocou. Calaram de uma só vez, Gilberto, Caetano, Chico, Raul, a cidade.
E este não foi o pior atentado contra a praça! Muitos outros foram cometidos a partir de então, por gente moralista, inculta, desinformada, medíocre!. Mexeram no traçado original, alargando ou retificando passagens, trocaram os belos canteiros e nichos por árvores imensas, descabidas para o tamanho da praçinha. E num ato ininteligível, abriu-se uma rua, na verdade, uma avenida, num dos contornos mais lindos e aconchegantes da praça.
Pobre praça Benedito Valadares, pobre pracinha dos tropeiros, pobre povo de Curvelo que fica à mercê de idéias malucas, descuido e desleixo. Sofia sonha com a reabilitação e restauração da pracinha, tal qual fora idealizada no seu projeto original e sonha subir ao palanque e cantar baixinho, mão no peito, sob a imaginária batuta do professor Sebastião Labanca: "Terra morena, terra querida, minha Curvelo, flor do sertão. Deste-me o encanto de tua vida, dou-te o carinho do coração. Minha Curvelo como te quero, ruas e praças, coisas e gente, povo operoso, franco e sincero..."

* Esta é uma obra de ficção! Qualquer inverossimilhança com a realidade histórica da cidade de Curvelo provavelmente é verdade!
** Curvelo não tem hino e esta música aprendida no Colégio Estadual Dr. Boliviar de Freitas, nos anos 70, é apenas uma canção de amor dedicada a cidade.